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sábado, 28 de maio de 2011

Neurônios e materialismo dialético - Roberto Lent.

Gás neurotransmissor unifica estados contrários no cérebro: ponto para a filosofia marxista?
Por: Roberto Lent
Publicado em 24/09/2009 | Atualizado em 20/01/2010
Neurônios e materialismo dialético
Os dois elementos opostos que constituem o sistema nervoso: a célula verde é um neurônio piramidal (excitatório) em uma fatia do córtex cerebral e as células vermelhas são neurônios inibitórios (foto: Thomas Nevian, da Universidade de Berna, Suíça).


Minha geração, que hoje é sexagenária, viveu um período rico de embate de ideias na década de 1960, época em que pontificavam os princípios do materialismo dialético. Lembro bem desse embate, especialmente dos aspectos que se referiam à ciência.

Nesse campo, o suprassumo de nossas leituras filosóficas era A Dialética da Natureza, do filósofo alemão Friedrich Engels (1820-1895). Nesse livro, Engels expôs os seus três princípios fundamentais da natureza: a lei da unidade e do conflito de contrários, a lei da passagem do quantitativo ao qualitativo e a lei da negação da negação. Sobre a primeira lei, Engels entendia que na natureza as coisas geralmente são determinadas pela ação mútua de dois polos opostos, e que a existência desses polos lhes conferia uma unidade. Assim, cada objeto ou fenômeno natural seria o resultado unificado da interação de forças contrárias.

O problema era compreender isso aos 18 anos. Confesso que repetia, admirado, a concepção de Engels, escondendo minha dificuldade em aceitar de que modo um fenômeno podia ser ao mesmo tempo unificado e dividido. Os físicos tinham vários exemplos à mão, como o átomo, composto por prótons e elétrons, e os dois polos dos ímãs.

Mas, na incipiente neurociência da época, os exemplos eram escassos. Fiquei surpreso, agora, ao achar tardiamente um exemplo prático da primeira lei da dialética, quando me deparei com uma descoberta importante que acaba de ser publicada por um grupo de pesquisadores franceses. Eles mostraram como o cérebro é capaz de controlar continuamente a sensibilidade dos neurônios, regulando-a para os altos e baixos do fluxo de informações do dia a dia.

O neurônio e seus dois contrários
Neurônios são células excitáveis, o que, na prática, significa que produzem sinais elétricos que codificam informações provenientes de outros neurônios ou diretamente do ambiente. A excitabilidade do neurônio é possibilitada por uma membrana que o envolve, capaz de separar os íons de dentro daqueles que ficam fora da célula, criando uma diferença de potencial elétrico sobre a qual ocorrerão os sinais do código neural.

O cérebro precisa manter os neurônios “à flor da pele” enquanto estamos acordados, deixando-os prontos para disparar seus sinais de informação a qualquer momento e quaisquer que sejam as condições ambientais. Imagine a dificuldade. Você tem que ser capaz de entender o que um conferencista está dizendo, esteja o público em silêncio ou conversando. Tem que ser capaz de inserir a chave exatamente no buraco da fechadura no claro ou no escuro, e deve acertar o passo na direção certa, sozinho ou no meio de uma multidão.
Para isso, cada neurônio tem a sua excitabilidade regulada continuamente – entre o silêncio e a insensibilidade do sono e o alerta e a extrema vivacidade da vigília. O caso é que a excitabilidade de cada neurônio é regulada pela interação de dois contrários: excitação e inibição. E essas funções contrárias são providas por tipos opostos de sinapses (os pontos de contato e troca de informações entre neurônios): excitatórias e inibitórias.

A coisa funciona assim: nos circuitos cerebrais, cada neurônio recebe milhares de sinapses de outros neurônios. Algumas são excitatórias e outras, inibitórias. Enquanto as primeiras mantêm o neurônio “à flor da pele”, as segundas o tornam menos sensível, bloqueando a informação incidente. Quando é necessário aumentar a sensibilidade do neurônio, predomina a atividade excitatória, e o contrário ocorre quando é necessário “adormecer” o neurônio um pouco. Tudo isso no meio do bombardeio constante de informações (excitatórias) provenientes do meio ambiente que muda a cada momento: sons, movimentos do corpo, luzes, imagens e assim por diante.

Neuroplasticidade homeostática
A questão fundamental da biologia do neurônio, então, é saber como se dá a regulação dinâmica da sua excitabilidade, isto é, de que modo os circuitos conseguem manter a excitabilidade neuronal, aumentá-la ou diminuí-la conforme as circunstâncias. Em outras palavras: precisamos saber como o cérebro controla a sua própria excitabilidade, neurônio a neurônio, momento a momento.

Essa questão foi abordada por um grupo francês liderado por Philippe Fossier, do Instituto de Neurobiologia Alfred Fessard, em Gif-sur-Yvette (França). Os pesquisadores definiram a capacidade de regulação do nível de excitabilidade dos neurônios como neuroplasticidade homeostática, aproveitando dois conceitos importantes (e contrários!): plasticidade – a capacidade de mudança do cérebro em resposta à dinâmica do ambiente – e homeostase – a capacidade de estabilização funcional frente a essa mesma dinâmica ambiental.

A hipótese que propuseram é que os neurônios mantêm relativamente constante a sua sensibilidade ao ambiente – apesar das turbulências deste – por meio de um mecanismo de regulação do equilíbrio entre duas forças contrárias: a excitação e a inibição.

Os pesquisadores trabalharam com experimentos relativamente simples. Cultivaram fatias de córtex cerebral de ratos, mantidas vivas e funcionais em laboratório, e nelas combinaram a estimulação elétrica simultânea de um grupo de neurônios com o registro dos sinais elétricos produzidos em neurônios isolados do mesmo circuito.

Nessas condições, verificaram que o balanço entre excitação e inibição em cada neurônio cortical era constante: 20% de excitação, 80% de inibição. Ou seja: ao estimularem os neurônios com alta ou baixa frequências, o balanço permanecia o mesmo. Esse tipo de experimento tem a vantagem de tornar possível a adição de drogas ao frasco de cultura, e assim alterar controladamente a resposta do neurônio perante substâncias ativadoras ou bloqueadoras de cada etapa dos processos bioquímicos da excitação e da inibição. E o modo de ação dessas substâncias revela os mecanismos bioquímicos do processo.

Um gás no controle da contradição dialética do córtex
Os neurônios escuros são nitridérgicos, isto é, capazes de produzir óxido nítrico. Eles são os mantenedores do balanço dialético do córtex cerebral (foto: Marco Rocha Curado, que defendeu esta semana tese de mestrado sobre a morfologia dos neurônios nitridérgicos do rato na Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Os experimentos realizados pela equipe francesa encontraram o responsável pela neuroplasticidade homeostática: o gás óxido nítrico. Essa estranha substância (um gás no cérebro?) é sintetizada por proteínas existentes dentro do neurônio e em outras células e imediatamente se difunde através das membranas para ativar moléculas dentro de todas as células que encontre no caminho, sejam neurônios, células de vasos sanguíneos ou quaisquer outras.

O óxido nítrico é produzido por neurônios especiais distribuídos em mosaico em todo o córtex cerebral e demais regiões do cérebro. Esses neurônios possuem a enzima que sintetiza óxido nítrico e, segundo a equipe de Philippe Fossier, são os mantenedores do balanço excitação/inibição que garante a estabilidade da excitabilidade dos circuitos neuronais. Parafraseando Carlos Drummond de Andrade: não é uma boa rima, mas é uma boa solução.

Desse modo, nosso cérebro está dialeticamente preparado para manter-se capaz de responder às informações provenientes do ambiente, ou as produzidas pelas suas próprias maquinações interiores, independentemente das oscilações de ruído, luminosidade ou movimento corporal.

Engels não podia supor que a sua primeira lei da dialética encontraria exemplos na neurociência. E muito menos os neurocientistas como eu poderiam supor que suas evidências poderiam ser associadas ao marxismo! Essa constatação não daria para consertar o mundo, mas é uma associação inusitada...
SUGESTÕES PARA LEITURA
F. Engels (2000) A Dialética da Natureza. Editora Paz e Terra, 238 pp.
N. Le Roux e colaboradores (2006) Homeostatic control of the excitation-inhibition balance in cortical layer 5 pyramidal neurons. European Journal of Neuroscience, vol. 24: pp.3507-3518.
N. Le Roux e colaboradores (2009) Roles of nitric oxide in the homeostatic control of the excitation-inhibition balance in rat visual cortical networks. Neuroscience, vol. 163: pp.942-951.
Roberto Lent Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
24/09/2009

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Pensar sobre pensar - Roberto Lent.

Quando analisamos uma decisão que tomamos ou um pensamento que temos, realizamos um ato de metacognição. Roberto Lent aborda um estudo sobre essa característica humana de introspecção, e os mecanismos cerebrais que a geram.
Por: Roberto Lent
Publicado em 24/09/2010 | Atualizado em 24/09/2010
Pensar sobre pensar
Neurocientistas chamam a capacidade humana de refletir sobre os próprios pensamentos de metacognição. É com essa introspecção que avaliamos a certeza de nossas decisões (Montagem: Júlia Dias Carneiro. Ilustração: Flickr.com/Graela – CC BY-NC-SA 2.0).
No cotidiano, deparamo-nos frequentemente com escolhas e decisões a tomar, com maior ou menor urgência e importância. Em quem devo votar? Que filme verei hoje? Que curso escolherei para o vestibular? Qual a resposta certa para a pergunta da prova?
Acabamos decidindo alguma coisa, mas... Será que fizemos certo? Nesse processo, durante e após a tomada de decisão, refletimos sobre nosso próprio pensamento e avaliamos as nossas escolhas.
Pensamos sobre o nosso próprio pensamento: esta é uma propriedade da mente humana que os neurocientistas chamam de metacognição.
Pensar sobre o nosso pensamento: esta é uma propriedade da mente que os neurocientistas chamam de metacognição
Podemos ilustrar esse processo com um teste simples. Se pedirmos ao distinto público que aponte, dentre as sequências de segmentos abaixo, a que lhe pareça ter a maior precisão de foco, não haverá muita dificuldade. Pelo menos, rapidamente você escolherá uma delas sem maiores problemas.
O difícil é se, depois da sua resposta, alguém lhe perguntar que grau de certeza você tem sobre a escolha que fez. Você diria que tem 100% de certeza de que acertou?
Linhas de Gábor
Não é tão difícil escolher uma das sequências acima com mais foco. Difícil é ter certeza da escolha! Essas linhas de contraste variável foram criadas pelo matemático e físico britânico nascido na Hungria Gábor Dénes, criador da holografia e prêmio Nobel de física em 1971, depois “rebatizado” Dennis Gabor (1900-1979).
Bem, se isso for parte de um experimento psicofísico para a identificação de contrastes, a primeira conclusão é que cada um tem uma sensibilidade visual diferente, e, portanto, fará sua escolha de acordo com essa característica sensorial que lhe é peculiar. A certeza (ou incerteza) do acerto variaria com o sistema visual de cada um. Portanto, para investigar a incerteza decisória, é preciso eliminar a incerteza sensorial.
Para esse fim, o experimentador pode regular a dificuldade do teste manipulando os segmentos contrastantes (conhecidos como linhas de Gábor). Isso é possível, já que eles são gerados por funções matemáticas senoidais conhecidas. Dependendo dos parâmetros utilizados, as linhas podem ter diferentes contrastes, construídos ao bel-prazer do experimentador.
A vantagem desse procedimento é que se torna possível manipular as linhas apresentadas a cada sujeito, de maneira que todos tenham a mesma chance de acertar: por exemplo, 70% de respostas corretas. Assim, todos estarão em igualdade de condições, de acordo com a individualidade do seu sistema visual.
Gráfico da autoconfiança
O grupo de Stephen Fleming, do University College London, investigou o grau de autoconfiança de 32 voluntários sobre o seu próprio grau de acerto na escolha das linhas de Gábor com melhor foco. Os inseguros (losangos vermelhos mais à esquerda) remoem-se em dúvidas sobre sua escolha. Os seguros (losangos à direita) têm até 100% de certeza sobre sua decisão. Qual seria a sua posição nesse experimento? (Modificado de Fleming e colaboradores – Science/2010).

Decisões e autoconfiança 

Agora, já que a percentagem de acertos sobre o contraste das linhas de Gábor se tornou constante para todos os observadores (confira os triângulos azuis no gráfico acima), pode-se testar o grau de certeza de cada um sobre a sua escolha (os losangos vermelhos do gráfico), independente da sensibilidade visual individual.
Esse experimento foi feito recentemente por um grupo de pesquisadores liderado por Stephen Fleming, do University College London, na Inglaterra. O resultado, publicado este mês na Science, foi interessante, talvez bem conhecido dos psicólogos: alguns demonstraram muitas dúvidas sobre sua escolha, enquanto outros tinham absoluta certeza da mesma. A autoconfiança variou de 0 a 100% entre os indivíduos!
Autoconfiança tem a ver com a personalidade de cada um e com a capacidade de refletir sobre seus atos e pensamentos

Autoconfiança tem a ver com a personalidade de cada um, e também com a capacidade de refletir sobre seus atos e analisar seus próprios pensamentos: reflete a tal metacognição que mencionamos acima. De fato, testando várias vezes os mesmos sujeitos, o grupo de pesquisadores constatou que a autoconfiança individual era bastante consistente – uma verdadeira ‘marca de personalidade’.

Stephen Fleming e seus colaboradores chegaram àquela conclusão famosa: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Ou seja: muitas de nossas decisões do dia a dia são tomadas sem que tenhamos grande certeza de que agimos certo. O desempenho comportamental é uma coisa, a autoconfiança sobre ele é outra!


A frenologia moderna

O grupo do University College London não ficou nisso. Perguntou-se se seria possível identificar as regiões cerebrais envolvidas com a metacognição. Trata-se de um empreendimento audacioso, que remonta aos frenologistas do século 18, a cuja história vale referir.
Nessa época remota, o cérebro estava começando a vencer a disputa com o coração pelo direito de ‘sediar a alma’, ou seja, como o ‘locus’ estrutural das propriedades cognitivas e afetivas que todos possuímos. Especulava-se muito, no entanto, dada a falta de técnicas capazes de dar base científica ao problema.
Apesar desse aspecto especulativo, o conceito de localização cerebral das capacidades cognitivas mostrou-se correto até hoje
Na época, destacou-se nesse campo o médico alemão Franz Joseph Gall (1758-1828). Gall defendia que as capacidades mentais se localizavam em regiões específicas do cérebro.
Durante a vida do indivíduo, acreditava, algumas regiões se desenvolviam mais que outras, e acabavam por imprimir uma marca no crânio, identificável externamente por medidas craniométricas. A tese ficou conhecida como frenologia (do grego phrenos, mente; e logos, estudo).
Gall atirou no que viu, e acertou o que não viu. As funções que atribuía ao cérebro eram completamente especulativas, e a possibilidade de prever a nossa personalidade analisando as protuberâncias de nosso crânio não se confirmou. Para se ter uma ideia, a frenologia listava como funções mentais as seguintes: idealismo, espírito de imitação, combatividade, autoestima, destrutividade, e, até mesmo... republicanismo!
Frenologia
A figura à esquerda é um cartaz frenológico do século 19. A inscrição no pescoço significa “Conhece-te a ti mesmo”, em alemão. À direita, Joseph Gall é representado palpando o crânio de uma pessoa, presumivelmente para determinar-lhe a personalidade (fotos: Wikimedia Commons).
Apesar desse aspecto especulativo, o conceito de localização cerebral das capacidades cognitivas mostrou-se correto até hoje, confirmado pelos estudos com neuroimagem por ressonância magnética. Esses estudos partem da tese correta de Gall, segunda a qual as funções mentais são localizadas no cérebro, se não em regiões únicas restritas, certamente em redes neurais articuladas e conectadas funcionalmente.
As funções atribuídas ao cérebro no século 19, apesar de sua falta de base científica, estão de certa forma sendo resgatadas pelos experimentos controlados de hoje. Não soa ‘frenológico’ dizer que a autoconfiança possa estar localizada em uma certa região cerebral?


A localização cerebral da autoconfiança

Foi daí que partiram Fleming e seus colaboradores. Definiram quantitativamente a autoconfiança, que passaram a considerar uma expressão da metacognição – a capacidade introspectiva de avaliarmos mentalmente a certeza das nossas decisões e ações.
Aqueles com alto grau de autoconfiança apresentavam maior volume cerebralno córtex pré-frontal anterior
Cada sujeito, portanto, adquiriu uma medida numérica do seu grau de autoconfiança, expressa nas proporções que estão representadas no gráfico como losangos vermelhos.
Os mesmos sujeitos eram então levados a um exame de ressonância magnética capaz de medir o volume das diferentes áreas do cérebro (que presumivelmente reflete o número de neurônios) de cada um.
E, finalmente, um estudo de correlação estatística era realizado para comparar o grau de autoconfiança de cada indivíduo com o volume das áreas cerebrais.
O resultado foi uma correlação positiva do volume do córtex pré-frontal anterior, principalmente no hemisfério direito (as áreas identificadas com cores quentes na imagem), com a autoconfiança dos sujeitos. Aqueles com alto grau de autoconfiança apresentavam maior volume cerebral nessa região, e os inseguros exibiam menor volume.
Regiões do cérebro
A imagem mostra os dois hemisférios cerebrais, apresentando em cores quentes (vermelho, amarelo) as regiões cujo volume mais se correlaciona positivamente com o grau de certeza dos sujeitos que participaram do experimento (Modificado de Fleming e colaboradores – Science/2010).
É preciso exercer uma certa cautela ao interpretar resultados de correlação. Duas medidas podem estar correlacionadas, sem que necessariamente uma seja a causa da outra. No entanto, como as regiões apontadas no estudo são às vezes atingidas por lesões, e esses pacientes exibem sintomas depressivos com baixa autoestima, é inescapável a hipótese de que, neste caso, a presunção de causa-efeito possa ser verdadeira.
Além disso, não deixa de ser curioso que estejamos, em pleno século 21, a comprovar, por meios científicos controlados, que a especulação desenfreada dos frenologistas talvez não tenha sido tão absurda assim...   
Sugestões para leitura

H.S. Terrace e L.H. Son (2009) Comparative metacognition. Current Opinion in Neurobiology, vol. 19, pp. 67-74.

S. Fleming e colaboradores (2010) Relating introspective accuracy to individual differences in brain structure. Science, vol. 329: pp. 1541-1543.


Roberto Lent

Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro

quarta-feira, 25 de maio de 2011

teoria e práticas

Tenho uma dúvida.

Nos anos 80 e 90, fiz muitos cursos e vivências de terapias/práticas corporais, inclusive do shiatsu. Sou super desajeitada, mas estranhamente (estranhíssimamente) na hora de praticar, "baixa" um santo do faz-tudo e eu acabei sendo em várias turmas às quais pertenci uma das melhores praticantes dos ditos cursos/vivências.

Reparo então o seguinte: nem sempre quem melhor "entende" (com a cabeça) é quem melhor pratica (com o corpo) este tipo de abordagem que tem o corpo como base. Ás vezes, com muita dedicação o tipo que chamarei de -"mental" consegue praticar direitinho, mas nem sempre. Nem tudo é explicável e sistematizável de forma a que quem tem mais tendência ao pensar consiga "executar" estas performances que têm o corpo como centro do assunto.

Mesmo na super teórica prática psicanalítica acontece algo semelhante: nem sempre o melhor estudante ou teórico é o melhor clínico. Ou seja: até mesmo um treco totalmente totalmente teórico- como é o caso da psicanálise- na prática exige aptidões que o indivíduo mais "mental" não consegue realizar com tanta eficiência quanto o que consegue na teoria.

O fato de estarmos estudando da forma como o estamos fazendo agora- lendo e conversando sobre, sem praticar nada- não pode ser uma faca de dois legumes? Não deveríamos associar um pouco a teoria à prática de maneira a "funcionarmos" melhor quando fôssemos clinicar?

Sem dúvida é preciso a base teórica para que as coisas tenham a dimensão teórica correta e para que todos possamos alcançar um patamar comum. Mas será que não seria interessante termos algum espaço para um papo prático de tudo o que estamos abordando?

Pelo que entendi, o papo mais prático começará lá adiante. Mas do jeito como entendo que estas coisas acontecem, talvez a prática devesse vir juntinho da teoria, até para que fôssemos sanando desde já os problemas que uma prática implica.

Acredito que isso implicasse em aumentar e/ou atrasar o curso. Sei lá. Eis aí minha meta-questão ;).

terça-feira, 24 de maio de 2011

Repressão e recalque. P. do prazer e P.da realidade.

·         Coutinho Jorge menciona carta á Fliess de Freud, fins de 1897 > “expressa, pela 1 º vez, que algo orgânico desempenha um papel no recalque” > > “é precisamente graças a sexualidade recalcada nos processos de recalque normal que surge uma multiplicidade de processos intelectuais do desenvolvimento – tais como medo, vergonha e coisas similares”
·         Freud > isenta a constituição da subjetividade de injunções sócio-históricas > influências acidentais/ambientais cede lugar a fatores constitucionais > guinada rumo ao organicismo > exime a psicanálise da responsabilidade frente aos abusos cometidos contra as crianças pela educação violenta e autoritária e frente as injunções econômicas que permeiam os valores educativos, da produção da doença mental ou mesmo da produção das singularidades > disposição neuropática geral > o recalque independe do ambiente, é um mecanismo estrutural e estruturante > não nos resta outra possibilidade a não ser conviver com o mal – estar, com a destrutividade, com a discriminação social e racial  e com a violência contra as crianças como o preço a pagar pela nossa condição civilizada
·         Coutinho Jorge sobre Reich: “(...)Lacan veio a precisar tal distinção, mostrando o engodo inerente a concepção reichiana e pontuando não só que o recalque não provem da repressão, como também que a repressão é, ela mesma, um efeito de haver recalque. Decorre precisamente daí o fato de Freud ter sido levado a formular a noção de recalque originário, isto é, de um recalque que antecede tudo e esta na origem mesma da constituição da estrutura do sujeito”
·         Reich não desconsidera os processos de recalcamento, mas colocará uma diferença significativa quanto à dinâmica implicada na duplicidade dos sistemas psíquicos (inconsciente e pré consciente/consciente)  e na suposta disposição neuropática geral estipulada pelo recalque originário: ambos revelar-se-ão um produto do encouraçamento caracteriologico que deriva de uma certa repressão social original; esta sim, a fonte daquele ‘algo orgânico que desempenha um papel no recalque’
·         O recalque é estrutural na medida em que emerge da formação dos traços caracteriológicos e afeta as funções motora, autonômica e cognitiva – em particular a atencional. Freud jamais poderia imaginar que o organismo fosse capaz de assimilar ‘organicamente’, isto é, em termos de memórias de procedimento de tipo inconsciente, as incidências modeladoras exercidas pelo ambiente no interesse da cultura em vigor.
·         Reich > o recalcamento é um processo que se desenrola entre o eu e as aspirações do infra eu, e o seu motor é Iac que domina Isex, do conflito entre elas resulta o desenvolvimento psíquico > ênfase ao caráter aberto do aparelho das pulsões – acoplamento estrutural (Maturana&Varela) > no entender de Reich, a psicanálise não pode conceber a criança sem a sociedade > teoria da libido: um organismo em deriva natural, em acoplamento estrutural com o meio, afetando-o e sendo por ele afetado, especialmente no tocante a Isex, dada a sua maior plasticidade (Iac exige satisfação imediata de forma imperiosa e não pode ser recalcada) > o principio de realidade é também atravessado por fatores acidentais > criticas à Freud  no fato de tal principio ser apresentado como um dado absoluto:  “ Por adaptação à realidade, entende-se simplesmente a adaptação à sociedade(...)” >
·         Freud abandona o modelo cientifico-natural em prol de uma posição transcendente e alinhada com as forças sociais hegemônicas: “A investigação cientifica tem demonstrado irrefutavelmente que a atividade psiquica está vinculada à função do cérebro mais do que qualquer outro órgão.(...)Porém, todos os intentos realizados de tentar deduzir de tais fatos uma localização dos processos psíquicos,(...)fracassaram por completo” > abandona o cérebro e o corpo a fim de afastar a importância de fatores acidentais na gênese do conflito psíquico > desenvolve a teoria do recalque em termos metapsicológicos em 1915 > operações de recalcamento necessitam reorientar uma parte do impulso libidinal contra si mesmo
·         Reich > deriva do modelo da 1ª tópica a concepção do Ics como uma formação erigida a partir dos traços de caráter e o processo de recalcamento emerge da dinâmica da estrutura caracteriológica, engendrada a partir da dissociação do impulso unitário original.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

FREUD SÓ PENSAVA “NAQUILO”?


Durante uma palestra minha, já faz tempo, alguém da platéia perguntou por que nós, Psiquiatras e Psicanalistas, só pensamos em violência e sexo quando, na vida, há outras coisas tão mais ricas e bonitas.

Não era a primeira vez que tal pergunta surgia. Por isso não fiquei surpreendido; estou acostumado com essa visão equivocada do que seja a Psicanálise.

Muita gente pensa que a Psicanálise nos enxerga como bichos, o que não é justo, pois ninguém formulou, sobre as emoções humanas, uma idéia tão romântica, lírica e poética quanto Freud.

A Psicanálise nos ensina que já nascemos apaixonados. Quando estamos nos braços de nossa mãe não é só proteção, alimentação, calor e abrigo o que buscamos. Queremos que ela nos dê leite e... deleite. Queremos dela alimento para o nosso corpo e para nossa mente. Caro leitor, somos seres emocionados desde o primeiro ao último suspiro de nossas vidas! Já nascemos enfeitiçados por este feitiço que é o amor.

Amor é correspondência, é sintonizar à emoção daqueles que amamos e ser por eles sintonizados na nossa emoção. Tudo no amor tem de ser mútuo; nada nos fascina tanto quanto cativarmos aqueles que nos seduziram.

Só que esse amor não é platônico, ou apenas incorpóreo. Ninguém nasce anjinho, sueco ou alemão. Em nossas artérias e veias pulsa o sangue quente da paixão (até rimou!).

Somos pessoas de carne e osso; almas encarnadas.

Na profundidade de nossas emoções não há atração de espíritos sem atração de corpos. Como não há atração de corpos sem atração de espíritos. A essência do amor é isso: um entusiasmo sensualizado, uma sensualidade entusiasmada. Ao estarmos enamorados buscamos um entrelaçamento de coração, cabeça, corpo e membros. Isso é o que Freud chama de sexualidade e não alguma animalidade no cio.

São energias que vibram e fazem vibrar nossa alma e nossos corpos. Não fossem essas energias em pouco tempo estaríamos todos mortos. São elas que garantem a continuidade da espécie, além – é claro – de garantirem todo o colorido da vida.

Toda timidez, angústia, depressão, etc. está intimamente ligada à percepção de que não somos, ou fomos, suficientemente amados... ou que representamos pouca coisa no coração dos outros... ou que perdemos algo ou alguém...

Os bem-amados possuem sempre um sólido sentimento de segurança e auto-estima.

O amor, desde que razoavelmente correspondido no seu leito principal, desde que não excessivamente bloqueado no seu fluxo original, inunda todo o universo. “Irriga as plantas, preocupa-se com as baleias, os golfinhos e todos os bichos em extinção, enfim, procupa-se com a natureza, gerando sentimentos ecológicos; inunda todos os povos, culturas e países, gerando os sentimentos de fraternidade e os ideais políticos; decola da terra e levanta vôo para o céu, gerando sentimentos religiosos. Porque o amor é a essência da própria vida”.

Portanto, caro leitor, isso é que é sexualidade para a Psicanálise. Só quando ferida é que gera a brutalidade, o estro sem afeto, a violência.

Agora pergunto: existe alguma idéia mais bonita, mais poética e mais romântica do que a idéia que a Psicanálise faz de todos nós?


Dr. Nei Guimarães Machado

Médico Psiquiatra.