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terça-feira, 8 de novembro de 2011

HUMANIDADE EM XEQUE? - Henrique Schützer Del Nero

O campeão mundial de xadrez perde para um computador e a humanidade pensa estar em xeque. Será o xeque-mate? Não, ainda vai demorar algum tempo para que esse risco deva ser levado a sério. O momento é de dirimir dúvidas antropomórficas sobre a emergência de raciocínio e inteligência em máquinas. Para isso, é preciso que entendamos a correta relação entre cérebros e computadores.
A analogia entre o computador Deep Blue e Kasparov é indevida: o primeiro faz milhões de cálculos por segundo, usando uma lógica digital (sim ou não, 0 ou 1); o segundo utiliza uma forma analógica de processamento (todas as gravações possíveis entre um número e o outro, incluindo aí o 0 e o 1).
O processamento analógico somado à simultaneidade de múltiplos canais dota o cérebro de capacidades insuspeitáveis a Deep Blue. O digital, somado à velocidade do chip de sílica, é capaz de nos derrotar no xadrez. Nas metáforas, alegorias, cenários complexos e, sobretudo, na capacidade de engendrar sociedade e moral, ainda não.
Algumas dicotomias são fundamentais para que se entenda a diferença entre o cérebro humano, dotado de mente e personalidade, e o computador Deep Blue. Deep Blue tem um conjunto harmônico de
processadores centrais comandando suas operações; Kasparov não tem qualquer sucedâneo de controlador central. Deep Blue tem memórias com endereços claros, sensíveis à destruição por qualquer curto-circuito; Kasparov tem memórias distribuídas por grande parte de seu cérebro, o que faz com que resista ao envelhecimento sem que com isso se apaguem arquivos inteiros e se percam referências vitais. 
Deep Blue não aprende, não tem infância, não interage com os outros e não descobre a mentira como artificie da separação entre o mundo interior do desejo e o exterior da repressão; Kasparov aprende e se organiza de acordo com a experiência pretérita, sua e de sua cultura. 
Deep Blue opera através de um programa, em que pese programa sofisticado que permite a harmonização sincrônica dos múltiplos processadores (pseudo-noção de processamento paralelo, tecnicamente chamada de processamento cooperativo), mais ainda assim software; Kasparov tem processamento paralelo legítimo, sem controlador central, operando sem software bem delimitado - no cérebro tanto software quanto hardware se mesclam numa só operação de oscilação e sincronização de neurônios.
Só existe mente quando, ao perigo de falhar no cálculo, se acrescenta o perigo de falhar na expectativa depositada sobre si. Essa carga humana, ainda hoje dificilmente reproduzível em máquinas. As emoções e a
vontade, propriedades inimagináveis a Deep Blue, coroam e colorem a nossa espécie. Enquanto a máquina não as tiver será apenas uma traquitana sem inteligência genuína. 
Deep Blue não tem estilo; Kasparov tem estilo;  
Deep Blue não tem humor; Kasparov não voltará a ter tão cedo.
Problema técnico suplementar advém da natureza digital-formal de Deep Blue. Como quase todos os sistema desse tipo, está sujeito à parada (isso é tecnicamente conhecido como problema de indecidibilidade de
gödeliana e parada de uma máquina de Turing, espécie de computador teórico ideal, infinitas vezes superior a Deep Blue) fato que o impedirá de decidir sobre o passo seguinte ou sobre a verdade ou falsidade de uma sentença.  
A consciência humana, ponto nodal da mente que emerge do cérebro, não exibe “parada” diante de determinados problemas em que Deep Blue entraria em looping (vulgo “parafuso”). Isso advém da natureza analógica do processamento cerebral como querem ou talvez - segundo os mais afoitos cientificamente -
de sua natureza quântica e não-algorítmica (isto é, não calçada no seguir regras estritas, bem delimitadas e seqüenciais de operação).
Um computador ou qualquer máquina que um dia seja programada com o código analógico que utilizamos talvez seja capaz de crescer, aprender, inserir-se na comunidade e agir como nós. Para isso a máquina não
será programada nem terá a velocidade do computador da IBM; sua inteligência não será programa que avalie exaustivamente a hipótese já pronta, mas algo capaz de criar teorias a partir de um pouco, testando-as
transformando-as em conhecimento legítimo. 
Um computador que precisa percorrer o planeta inteiro inspecionando cada gato, cortando-o em fatias e
decompondo-o ao limite, nem por isso será capaz de entender a graça e o humor do desenho simples do gato Garfield comedor de lasanhas. Deep Blue dificilmente entende metáforas e nós rapidamente as entendemos.  
Afinal, a mente que surge da comunhão dos neurônios não é substância imaterial, espírito ou alma. É antes de tudo uma propriedade da matéria física cérebro em contato com a linguagem e a cultura.
Dota-se uma máquina do correto código cerebral, fazendo-a interagir dinamicamente com outras, quer na ação pura, quer na ação valorada e prudente, e teremos uma réplica do humano. Porém, não se assustem aqueles que vêem nessa possibilidade o final dos tempos. Não sabemos ainda qual o código analógico que o cérebro utiliza na forja do mental e nem temos máquinas que o repliquem na totalidade. 
A tarefa de estudar esse código, de compreender o surgimento do pensamento, da inteligência, da emoção, da vontade, da memória, criando-lhes análogos artificiais que nos auxiliem em diferentes tarefas é função da ciência cognitiva, super disciplina com quase 50 anos de idade no Primeiro Mundo, mas no Brasil ainda vista com um certo desdém.
Quando não é entendida como um fenômeno biológico localizado no cérebro humano, a mente fica acuada como Kasparov na sexta e última partida da disputa com Deep Blue. Essa incompreensão gera um sem-número de flancos para a proliferação do esoterismo desenfreado, para os manuais de auto-ajuda, para a irracionalidade que campeia e de que se servem os ignorantes e também os arrivistas que vendem bem-estar e salvação para a mente que sofre.
Gera ainda subproduto danoso que é a não aceitação de que a mente, como qualquer função do corpo pode adoecer. Nesse sentido, a figura emblemática de Deep Blue, antes de sitiar a condição humana, pode resgatá-la do desvario pseudo místico, recolocando a mente no cérebro e o conhecimento sobre eles no
devido lugar, menos devassado aos “achismos” dos esotéricos afoitos, encantados com barroquismos lingüísticos pseudo-significativos.
O xeque imposto à condição humana com conseqüência mais danosa que o desconhecimento da natureza cerebral da mente normal e desviada é a perda de valores claros na relações sociais. Sabe-se hoje que a ética e a solidariedade, antes de imposições externas, sociais ou religiosas, são atributos biológicos. Os macacos as têm; também animais inferiores. Computadores, por ora, nem sequer a esboçam, demonstração clara do quanto seus projetistas pretendem resolver problemas, porém nem de longe semelhantes aos dilemas
humanos. 
Será que nós, que somos o ponto apical da biologia do ser vivo, vamos deixar que o sistema econômico e político dos dia de hoje nos faça pensar que a mente é apenas algo forjado para dissimular, esconder, auto-emancipar, esquecendo-nos da solidariedade e respeito com o semelhante?
A mente e a humanidade estão em xeque se não entendermos que o cérebro cria a consciência individual e a coletiva (o computador joga xadrez mas não há ninguém que lhe ouse imputar a consciência ). Da interação entre as consciências pode surgir uma comunidade de deveres e direitos pleno, com alguma justiça que preserve a todos. Do contrário, serão a barbárie e a aniquilação. 
Não estamos em xeque pela máquina digital. Seremos um dia replicados em máquinas e espero que elas não pratique o jogo no qual temos demonstrado habilidade infinita: a hipocrisia e o descaso com o semelhante que
anda à mingua desempregado e excluído. 
Mas é preciso cuidado, pois os computadores que surgirem dessa época de individualismo desenfreado
poderão também saber jogar pôquer - blefando inclusive - e o jogo poderá ser desigual. Podem surgir tiranos nunca dantes vistos entre as máquinas, tais como já vimos surgir entre os seres humanos.
O problema deste final de milênio não reside na replicação e execução de funções mentais por computadores, fato que cedo ou tarde ocorrerá.
Reside, outrossim, no modelo de ser humano e sociedade com que
recepcionaremos essa nova classe artificial de convivas do circo social.


http://www.din.uem.br/~ia/maquinas/henrique.htm




A MENTE SITIADA- Henrique Schützer Del Nero (IEA-USP)

Uma psicologia séria, em tempos de mercado soberano, pode tornar-se refém de um dilema: adular o público, ainda
que com teorias forçadas, às vezes mentirosas, ou elevar o nível, correndo o risco de não ser ouvida. O consumidor,
esse tiranete que escolhe o que lhe apraz, agora é fórum de decisão sobre o rigor e a precisão da informação. A
satisfação do cliente pode em certos casos levar à adulteração ou à maquiagem do produto. Adulteração, quando se
vendem inverdades sob a aura de ciência. Maquiagem, quando se vende o óbvio, travestido de novidade de última
geração. Ou bem entendemos que a lógica do mercado admite até mesmo a mentira, ou reformulamos alguns dogmas
acerca do compromisso com formação e educação. Talvez tudo não passe de efeito colateral da sociedade livre:
pluralismo ou tentativa de conciliar, sob a aura de igualdade, o inconciliável.
A mente que se vende por ai lembra televisão sem circuito e com duendes mágicos que protagonizam os espetáculos.
Essa mente parece não ter cérebro a lhe dar suporte - pelo menos cérebro como entende a ciência e não como
propalam seus mistificadores -, não adoece e pode o que quiser, desde que mentalize, tome vitaminas e consuma
baboseiras. Uma ciência do mental pode, por ora, afirmar que há um recrutamento dinâmico de populações de células
- neurônios - que, dada a complexidade do processamento dos sinais elétricos, sincronizam em diferentes freqüências.
Tal fosse o comitê de uma empresa, a mente não é um departamento alojado neste ou naquele pedaço do cérebro; é um modo de reunião, em diferentes locais, que valoriza a regra de convocação - código neural - e não qualquer elemento que tivesse assento estável no comitê. Por isso é cérebro e não é, na medida em que se podem substituir os integrantes de cada comissão, desde que respeitada a lógica da convocação. Sem isso não haveria reabilitação neurológica epsiquiátrica. Tampouco haveria distúrbio ou lógica.
As empresas também precisam de saúde mental? Claro, perdem-se bilhões de dólares por ano somente com depressão,
sobretudo devido à perda de produtividade. Mas em lugar de chamar o especialista, compra-se um modismo para
"levantar o moral do pessoal". Seria bom, se não fosse péssimo. Bom, porque não faz mal dizer obviedades. Mal,
porque faz muito mal dizer obviedades.
A mente é um produto do cérebro. São bilhões de neurônios e trilhões de conexões. Vai daí que deve apresentar
algumas limitações e algumas desregulagens. Seria bom dizer que a mente é fantástica, mas é muito ruim dizer que
pode o que quiser. Seria bom dizer que presume um equilíbrio entre o pensamento, a emoção e a vontade, mas é muito ruim batizar equilíbrio, harmonia e educação como “inteligência emocional”. Faz mal dizer obviedades porque a tirania se impõe não pelo que afirma, mas pelo que omite.
Ciência séria quase não dá manchete, mas o público a venera quando liga o celular ou quando experimenta o mictório
com descarga acionada por célula fotoelétrica. Ama-se a tecnologia, braço menos nobre da ciência. Menos nobre
porque comprometido com o imediato, com o prático, com o lucro e com o retorno fácil. Ciência é estrutura;
tecnologia é conjuntura. Mas numa sociedade de agrado ao consumidor a conjuntura precede e determina a estrutura.
Falar de uma mente que permanece refém do discurso do espírito nos últimos séculos, situá-la no cérebro, dizer que
tem limites, que pode adoecer, isso não faz sucesso. Ao contrário, recheá-la de misticismo, duendes, anjos, esoterismo,
vitaminas, vida natural, amor (embora não ao próximo, nem aos excluídos), vidas passadas e outras tantas coisas
vende aos montes.
Tiranizados por alguns sábios do mercado livre e da sabedoria, resta-nos, para falar da mente, de seu sítio cerebral e
de seu poder, limites, anomalia e remédio, mantê-la trancada na pequena reunião de iniciados acadêmicos. Pena. Com
isso perdem o público que não se submete a abandonar velhos preconceitos; a imprensa que apenas informa,
atravessadora passiva de informação que deveria interpretar e discutir; a sociedade, enfim, que poderia aprender
algumas lições.
Primeira lição: desconfie dos milagres que se apregoam acerca da mente e do cérebro. Embora tenhamos ido longe,
nossa ignorância científica é maior do que pensam aqueles que se encantam com qualquer best-seller. Sabe-se muito
mais do que a mente não é capaz que daquilo que é capaz. Quem conhece boa ciência sabe que é melhor procurar cisne preto para derrubar a afirmação de que todos os cisnes são brancos. Quem se encanta com truísmos vive
exclamando e cortejando gente que diz que cisnes são brancos e cada ano mostra um para confirmar a teoria.
Segunda lição: entender a relação da mente com o cérebro, a complexa articulação que propiciou que surgissem
linguagem, sociedade, sujeito público e privado e, no cume disso tudo, moral, requer caminho tortuoso.
Terceira lição: a satisfação não é o melhor critério para testar teorias, como não o é mostrar o cisne branco. Quando
lançamos hipóteses científicas importa tanto o que se afirma quanto o que se nega, e em que condições. Uma mente
ilimitada não é mente, é mágica.
Quarta lição: se vamos formar alguém e ao mesmo tempo ter nesse alguém um julgador impiedoso, balizando nossa
atitude pela sua satisfação, então não eduque mais os filhos, não reprove mais o mau aluno e, por favor, somente dê
ouvidos à vizinha e ao clamor das ruas, ainda que esse clamor peça pela quiromante, pela caça ao boi gordo no pasto e
pela volta da ditadura.
Quinta lição: afora distúrbios mentais que devem ser precocemente diagnosticados e tratados, não há nenhum
conhecimento sólido sobre cérebro e mente que possa ser vendido na porta da empresa, da escola ou da sua casa, sem
que haja uma forte dose de oportunismo em jogo.
Desconfie quando alguém falar da mente e não citar, ato contínuo, sua natureza cerebral, suas limitações como
qualquer órgão físico, sua capacidade de comunicação e, pasme, o fato de estar no cérebro animal a origem funcional
do comportamento ético, não sendo mero fruto de época, "coisa de nossos avós" diria o enricado sem escrúpulos.
Alguns autores bem sucedidos, disputados a tapa pelas editoras e por uma mídia nem sempre coerente, gostam de falar
de uma mente que é apanágio de sucesso pessoal. Outros poucos, menos lidos, mais áridos, procuram lembrar que a
mente nasceu de um cérebro que está num animal mais frágil de corpo que a raposa e o tubarão, criança pequena de
tão longa gestação e infância, mas que pela razão e pela reunião solidária pode fazer vingar a espécie humana.

HENRIQUE SCHÜTZER DEL NERO é médico psiquiatra formado pela USP. Bacharel e Mestre em Filosofia pela
USP. Doutorando do Depto.de Engenharia Eletrônica da POLI-USP. Coordenador do Grupo de Ciência Cognitiva do
Instituto de Estudos Avançados da USP.Atividade em consultório privado de psiquiatria e psicoterapia há 13 anos.
Regularmente faz palastras e escreve textos sobre ansiedade e distúrbios emocionais para os alunos do Anglo
Vestibulares. É autor de O Sítio da Mente: Pensamento, Emoção e Vontade no Cérebro Humano", com lançamento
previsto para março pela Collegium Cognitio e de O Equilíbrio Necessário, Editora Scippione, com lançamento
previsto para o 2osemestre. Tem mais de 35 trabalhos publicados em congressos e revistas técnicas nacionais e
estrangeiras sobre modelos interdisciplinares de mente e cérebro

http://www.lsi.usp.br/~hdelnero/Gazeta1.html[27/11/2009 17:52:47]