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sexta-feira, 25 de março de 2011

E algum dia, haverá justiça sobre Reich?


Cada vez mais a psicanálise fala em corpo. Seja este o corpo físico ou um corpo metafórico, simbólico, a importância do corpo é ressaltada e reavaliada na psicanálise. Sim, Lacan falava em corpo e de fato, a palavra toca o corpo de uma forma sutil. Mas Reich veio antes de Lacan. Por que atribuir a Lacan o “corpo” da psicanálise, quando antes dele estava Reich, um aluno querido de Freud, psicanalista? A mim, me parece um tanto injusto.

Creio que esta estranha omissão tem a ver com o fato de que através de décadas, Reich foi simplesmente assassinado pela psicanálise. Sendo assim, situar este assassinato é algo fundamental. Principalmente porque Reich teve uma história de vida marcada por muita violência, um Édipo às avessas que passou por poucas e boas. Como é que tantas décadas depois ainda mais esta violência intelectual lhe é impingida?

Lanço aqui um começo de “papo”. Usei como referência um simpático livrinho, fininho, chamado Freud e Reich de Claudio Mello Wagner. Quando eu escrever bobagem, vocês me corrijam, ok? Então, aqui começo o texto.

É sabido que a exclusão de Reich da IPA deveu-se muito mais à sua militância política do que a sua clínica. É importante ressaltar isto porque até hoje muitos pensam que a sua clínica com abordagem corporal é que causou a ruptura. Isto não se deu desta maneira.

A psicanálise é uma teoria, um método e uma prática, que hoje vem a ser algo extremamente popular- é um dos primeiros recursos que buscam todos aqueles que se veem presa de algum distúrbio mental. Acontece que a psicanálise não paira acima do bem e do mal, ela sempre esteve atrelada a um contexto histórico, cultural e políticos determinados.

Por outro lado, nas ciências humanas a interferência da subjetividade dos personagens que as desenvolvem é algo mais do que certo. Mais vale a consciência destas interferências do que pretender negá-las e acreditar que ciências humanas são ciências exatas e neutras- até porque mesmo as exatas muitas vezes se provam inexatas e tudo o que até hoje fez o ser humano nunca deixou de ser humano e tendencioso ao fim das contas.

Reich foi praticamente banido do movimento psicanalítico e suas possíveis contribuições à psicanálise foram perdidas. Contribuem para isto os trabalhos corporais atuais, a utilização recente de algumas idéias de Reich e a opinião de historiadores da psicanálise sobre a obra e a personalidade de Reich.

Já agora antigo, o folheto de apresentação do IV Congresso Internacional de Somatoterapia em Buenos Aires, 1992, coloca o fato de que foram catalogadas nos Estados Unidos mais de 250 técnicas de trabalho corporal, que certamente hoje já devem ter triplicado. Terapia corporal, biodança, psicossíntese, morfoanálise, biodinâmica, vegetoterapia carátero analítica, bioenergética, manipulação profunda sensoperceptiva, somatoanálise estão entre aqueles nomes.

A maioria destas técnicas diz ter como meta de tratamento uma integração e uma maior harmonização psicossomática- sempre a partir de uma conscientização- por intermédio de posturas, movimentos, gestos, expressões, massagens, etc. pretende-se a mudança de conflitos psíquicos.

Todos estes trabalhos têm o corpo como ponto de partida e o referencial teórico e metodológico destas técnicas varia de Ferenczi à Gestalt, passando por Reich, Lacan, medicina chinesa, hindu, ioga e o que mais se possa imaginar.

Tal como um leigo não percebe as diferenças entre a psicanálise de Lacan ou a esquizoanálise de Delleuze, os psicanalistas colocam todas as terapias corporais como farinha do mesmo saco.

Reich foi um pioneiro no trabalho corporal na clínica psicanalítica, mas nem todos os trabalhos corporais têm algo de reichiano.

Tal como um seguidor de uma linha deleuziana não gostaria de ser confundido com Lacan, cada um dos teóricos das terapias corporalistas igualmente não gostaria de ter seus métodos confundidos com o de seus colegas- e opositores teóricos.

Na verdade, poucos destes citados trabalhos teóricos são oriundos das ideias de Reich. E tal como há psicólogos que indevidamente se autodenominam psicanalistas sem jamais terem sido avaliados como tais por uma instituição reconhecida há os que se dizem reichianos sem jamais terem passado por qualquer prática reichiana.

Tal como deitar num divã com uma pessoa sentada atrás não caracteriza a psicanálise, também não é ser reichiano fazer exercícios ou massagens que Reich ele mesmo jamais prescreveu. Sim, Reich usava massagens, mas muitas das chamadas massagens reichianas não têm nada de Reich. E quanto aos exercícios, que eu saiba, não há tal coisa como exercícios reichianos.

Reich é associado ao amor livre, aos clubes de swingue, ao movimento hippie, a antipsiquiatria, a anarquia, ao comunismo e sabe-se lá mais o quê numa imensa pizza. Se Reich soubesse o que veio a ser entendido como reichiano se levantaria da tumba e nos diria em alemão “que raios vocês estão pensando?”

Sim, Reich foi comunista (e expulso do partido comunista porque suas ideias sobre a sexualidade juvenil eram nocivas ao Partido Comunista), sim Reich tinha a sexualidade em alta conta, mas eis que para Reich tratava-se mais da capacidade de amar do que propriamente de fazer muito sexo. Reich era um romântico incurável. Freud, por sinal, também.

O contexto em que surge este grande interesse pelo corpo e pela saúde deste corpo é certamente pontual a um tempo político. Eram práticas “alternativas” ao que era oficial e Reich, como era um maldito, ressurge com grande força neste período, particularmente justo entre os que de alguma forma se sentiam também à margem da sociedade oficial.

E finalmente, os críticos.

Para muitos, um livro é um documento e como tal, alçado aos píncaros do pensamento e da produção cultural. Questionar o que diz um crítico ou um comentador? É tarefa para poucos. E é, de fato, uma tarefa para poucos.

Dentre estes comentadores, há um (Robinson) que diz que a cura “falada” foi inteiramente abandonada por Reich e que somente o corpo fala a verdade, por isso, na vegetoterapia a pessoa não mais se preocupa com recordações, sonhos ou associações. Robinson diz isso de uma forma que dá a entender que Reich teria endossado isto, quando em verdade é Robinson quem assim o diz. O que de fato Reich disse foi:

“Estes exemplos bastam talvez para demonstrar que, além de sua função de comunicação, a linguagem humana funciona muitas vezes também como defesa (grifo de Reich). A linguagem verbal obscurece a linguagem expressiva do núcleo biológico. Em muitos casos, isto chega a tal ponto que as palavras já não expressam coisa alguma e a linguagem verbal não é senão uma atividade dos respectivos músculos, carente de significado”.

Ou seja, Reich disse que as palavras atuam como resistência e jamais que elas não tinham valor terapêutico. Quem assim entendeu foi Robinson. Outro que contribuiu para a confusão foi Rycroft que diz que a ciência da orgonomia pertence à teologia e ao misticismo e não à ciência, usando como base o seguinte texto de Reich:

“O homem não pode sentir ou fantasiar qualquer coisa que não exista na realidade de uma ou outra forma, pois as percepções humanas nada são além de uma função de processos naturais objetivos dentro do organismo”.

Como Rycroft consegue entender este texto como metafísico é pura metafísica 
Mas mal entender Reich não acontece só com Reich. Acontece com qualquer texto um pouco mais complexo. Freud também foi interpretado erradamente inúmeras vezes. Aliás, em minha opinião, acho que pouco resta de Freud na atual psicanálise de tão mal interpretado que Freud foi ao longo deste século. Culpa de Freud? Não, certamente que não.

Por mais que pensemos que não há uma única interpretação de textos complexos e que sejam vastíssimas as possibilidades de leitura e tradução de qualquer discurso, temos de reconhecer que se eu digo que fui à praia e não a farmácia, quem disser que eu fui à farmácia e não fui à praia está entendendo mal às coisas ditas. Em relação às interpretações de Freud e Reich aplica-se o mesmo raciocínio.

Na história oficial, Ernest Jones foi considerado por muito tempo como biógrafo oficial de Freud incontestável. Até que alguns hereges começaram a ver que nem tudo o que Jones escreveu era lei.

Em seu A Vida e a Obra de Sigmund Freud, Ernest Jones relatando a exclusão de Reich nos informa que:

“O congresso Internacional deste ano foi realizado no dia 26 em Lucerna... Foi nesta ocasião que Wilhelm Reich se afastou da Associação. Freud o tivera em alta conta nos primeiros tempos, mas o fanatismo político de Reich levara a um afastamento pessoal e científico”

Dois outros psicanalistas também falam do evento, corroborando o que disse Jones. R. Sterba em suas reminiscências fala que Reich foi se afastando da psicanálise e que neste congresso teria ficado na barraca com uma namorada. E W. Briehl escreve que Reich tinha “conflitos intrapsíquicos”. Ou seja: Reich era um problemático juvenil que preferia acampar a estudar, por isso a IPA não quis mais saber dele.

Curioso, entretanto é ler que Reich afirma ter lido uma monografia neste tal congresso e que esta monografia é que finaliza sua participação neste congresso dado que a mesa diretora da Associação não quis identificar-se com estes conceitos. Ou seja: de fato, a IPA rompeu com Reich, mas há discrepâncias quanto aos motivos.

Claudio Mello Vagner acredita que o que afastou Reich da psicanálise não foi sua recém criada prática corporal e sim a insistência de Reich nos conceitos de genitalidade/ potência orgástica e concepções sociológicas de cunho marxista absolutamente estranhas à neutralidade da ciência psicanalítica. Mas o autor não se detém aí: ele vai procurar em fragmentos de autores não reichiano as respostas para este afastamento.

Um dos primeiros autores não reichiano que encontra é Robinson e é dele este texto:

“A filiação de Reich na Associação Psicanalítica Internacional foi oficialmente cancelada no Congresso de Lucerna em 1934. Ernest Jones relatou incorretamente (e com uma certa dose de má fé, desconfio) que Reich “demitiu-se” da Associação em Lucerna. De fato, Reich já tinha sido secretamente expulso da Sociedade Psicanalítica Alemã (e portanto da Associação Internacional) um ano antes. Soube, pouco tempo antes do Congresso Internacional, que o seu nome não figurava na lista oficial de membros da Associação.
Evidentemente foi-lhe explicado que a publicação de The Mass Psychology of Fascism (1933) fizera dele um risco para o movimento psicanalítico. Assim, o rompimento de Reich com a psicanálise estava inextrincavelmente ligado ao seu papel como ativista político e filósofo social”.

Portanto, sua expulsão foi um arranjo anterior a agosto de 1934 e o motivo foi a atividade política de Reich. Os argumentos- divergências psicanalíticas teóricas e práticas clínicas não-ortodoxas – nunca foram os reais motivos do afastamento de Reich.

Reich nunca se opôs ao conceito de inconsciente, recalque, sexualidade infantil e complexo de Édipo. Discordou quanto a segunda tópica de Freud, mas não foi isso que os afastou, dado que não só Reich, mas muitos outros também discordavam da segunda tópica de Freud. A prática clínica corporal só vai surgir depois de 1934, então, toda a suposição de que teriam sido as práticas corporais a razão do rompimento é falsa.

Elizabeth Roudinesco, nascida em Paris em 1944, ilustre acadêmica psicanalítica e estudiosa de Freud também discorda de Jones. Ela escreve que no momento que Hitler assume o poder, Reich é expulso do partido comunista e, em março de 1933, deixa Berlin e parte para Viena, onde é escorraçado pelos grupos mais poderosos dentro da IPA. Os que querem enxotá-lo o fazem menos por suas divergências ao freudismo do que por suas opiniões bolchevistas. Ela se refere à Wilhelm Reich na IPA como o seu mais “eminente membro de esquerda”.

Mas as coisas não param simplesmente em opiniões de uns e de outros.

Riccardo Steiner, psicanalista e historiador contemporâneo, obteve autorização dos arquivos da British Psychoanalytical Society e arquivos Sigmund Freud para citar e publicar documentos inéditos. Entre estes, cartas trocadas entre Anna Freud e Ernest Jones tratando do caso Reich. Nestas cartas, Anna fala do perigo que Reich representa e explicita o desejo de Freud de se desembaraçarem de Reich como membro associado.

Dado que a psicanálise já tinha na época suas próprias lutas para ser aceita, ter entre seus membros um sujeito judeu e comunista era demais. Por isto, mesmo Jones considerando-o como um psicanalista “bastante inteligente” e bom didata, é Jones quem depois se encarrega do assunto exclusão.

Como bem diz Claudio Mello Wagner, a psicanálise sofreu então um processo que se chama identificação com o agressor.

Num primeiro momento, a psicanálise sofreu com a perseguição nazista. Num outro, dentro deste mesmo movimento psicanalítico, antes vítima de perseguição, começou a haver perseguições a alguns membros- semelhante à modalidade nazista.

A boataria, a fofoca, a difamação fizeram parte deste processo de exclusão de Reich- processos estes que se assemelham ao que os próprios nazistas fizeram. Citando um exemplo prático: os nazistas cortavam o suprimento de água nos guetos. Os judeus então não podiam lavar-se e manter o asseio corporal. Passados alguns dias, os nazistas espalhavam a notícia que os judeus eram porcos porque não gostavam de tomar banho. Como a população alemã sentia o odor, mas não sabia da falta de água, passava a acreditar que os judeus eram porcos, uma sub-raça. Esta “fabricação de fatos” foi decisiva no ostracismo de Reich.

Desde sempre, o recurso mais bestial e mais comum é de que quando não se pode refutar o pensamento de alguém, nada melhor do que atacar pessoalmente quem diz o que incomoda para assim anular o efeito do que é dito. E, se não puder atacar pessoalmente por falta do que falar, vale então criar fatos. Arthur Schopenhauer, A arte de ter razão, nos dá 36 estratagemas para se vencer um debate na marra, mesmo sem ter razão. Destes estratagemas, quase todos foram usados contra Reich.

3 comentários:

  1. Valeu Cynthia! Uma boa surpresa e uma importante reflexão :o Keep Walking! Abraço.

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  2. Sobre o titulo da postagem: para mim trata-se menos de identificar culpados e mais sobre refletir sobre o conceito de "Justiça" à partir do aqui e agora. Acredito que o Curso/NEPP contribui significativamente para esta promoção. O que acham?

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  3. Cynthia, parabéns pela bela peça. Sua verve literária está mais afinada do que nunca. Gostaria apenas de fazer um reparo/adendo ao seu comentário: Segundo as fontes que usei na parte historiográfica da tese (Bernd Nitzschke e Bernd Laska, em especial o conteúdo aportado pelo primeiro, um psicanalista oficial e estudioso da historiografia da psicanálise alemã)a versão da exclusão pelo incômodo político que representava a presença de Reich na DPG teria diso tão somente uma cortina de fumaça a encobrir a real motivação da exclusão: a direção teórico-clínica original que Reich trazia para a psicanálise da época. Vale lembrar que naquele período (1922 a 1934)Reich ainda não havia cehgado ao desenvolvimento da psicoterapia corporal em sua primeira versão (a vegetoterapia caractero-analítica). Aos interessados no assunto, recomendo a leitura dos tópicos da tese que deixamos de lado na atual programação do nosso curso em andamento:Capítulo 2 - Pano de Fundo Historiográfico (pp. 18 ou 29 até 54 ou 65). Abraços a todos e vamos continuar postando comentários, pessoal; não necessariamente sobre o tópico levantado pela Cynthia.

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